Cláudia Canedo é jornalista e atriz, as fotografias acima foram tiradas no Núcleo de Fotografia da UFRGS, para a exposição Fotografia de Espetáculos. No decorrer do trabalho, Cláudinha apresentou o monólogo " Os Sobreviventes" de Caio Fernando Abreu, no qual transcrevo abaixo.
OS SOBREVIVENTES - Caio Fernando Abreu
SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz,
morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável continua: você pode
pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como
é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de
saudade, não é isso que te importa? uma certa saudade: em Sri Lanka, brincando
de Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era
bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui
entre nós, palmeiras e abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de
Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodka nacional sem gelo nem
limão. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos,
entre uma e outra carreira, pixando muros contra usinas nucleares, em plena
ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Tereza de
Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas
diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato
momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha
de centro em junco indiano que apóia vossos fatigados pés descalços ao fim de
mais uma semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários
atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos
tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos
juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais
e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi
uma bosta. Que foi que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no
outro, e não queria lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os
bicos do meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida,
você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se
você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta
tesão mental espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria
aceitar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos
melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente
sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o
teu pau não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes
demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando,
tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo
na buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo,
depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda
tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a
punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor
demais, você acreditava mesmo nisso? Naquele bar infecto onde costumávamos
afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse
não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu
negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo
aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o
veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me
passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada
contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada
contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o
maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo,
palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando,
ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso,
não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive
porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais
individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter dado
certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se
decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos
livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing
embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na
Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo
here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque
dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca
sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já
li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio
ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay
ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa,
mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum,
outra de Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo
incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução
nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um
cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve
haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na
beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de
tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie
de dignidade nisso tudo, ,a questão é onde, ,não nesta cidade escura, não neste
planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com
autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta
ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava
maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela
Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi
minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e
positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage,
companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial
criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em
cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites
não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a
causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordôo minha
sede com sapatinhos do Ferro?s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados
esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e blues com
caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial criativo
da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida. Mas eu
quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração,
caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que
pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha
garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do que
sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei
claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair
tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e gin-seng, depois deito,
depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral,
absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro
porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às
quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas
do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá,
até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida
drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé
nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto
amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me
permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada
contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito
velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu
não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão
cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela
pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de
Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das
papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar,
mas ela se contrai violenta e peded que eu ponha Angela outra vez, então viro o
disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua
cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo
tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas,
ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me
expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri
Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem
bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o
quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem
bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo,
que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse
gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro,
nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais
carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar
contra a parede para não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz
rouca de Angela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo
que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé!
eu digo e insisto, até o elevador chegar. Axé, odara!
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